Seu Severiano é um senhor que tem um carrinho e junta papelão para vender.
É morador de rua e me contou que veio morar na minha rua porque cansou de ser acordado
pelos usuários de drogas de uma rua movimentada aqui perto,durante a madrugada.
Os caras queriam roubar qualquer coisa que ele tivesse.
O carrinho dele é de uma organização perfeita.
Parafusos em caixas, papelão cortado , empilhado e amarrado. Revistas, pedaços de couro, de
plástico, lanternas velhas e pilhas , montes delas.... Tudo impecavelmente organizado
Graças a Deus ninguem aqui da rua reclamou e ele conseguiu se instalar perto de um muro de
um estabelecimento comercial. Ao cair da tarde eu já o vejo, subindo a ladeira que leva ao muro
onde ele estaciona. Ele tem que fazer uma força danada pra subir com aquele carrinho mega
pesado. Ele varre a calçada cheia de folhas de uma arvore grande que se debruça sobre o muro.
Varre de manhã e varre à tarde. Antes de se sentar no carrinho ele abre um grande guarda sol
para se proteger de possivel chuva e acopla o guarda sol sobre o carrinho sem pressa e com
muito capricho, todas as noites. Dormiu sentado ouvindo um radinho de pilha por aproximadamente um ano acho...
Um dia vi que ele havia conseguido arrumar ainda mais o carrinho e agora sobra espaço para ele dormir encostado e com as pernas meio esticadas.
Uma noite dessas dei de presente pra ele uma boom box ( aqueles super radios grandes), que não me servia mais e dei tambem dez reais para as pilhas
Era pouco dinheiro mas ele com a maior sinceridade do mundo me perguntou se era tudo bem eu dar aquela quantia e se não ia me fazer falta. Foi sincero não foi ironia não, foi super sincero , de quem não tem muito e valoriza tudo que tem.
a uns meses atras eu subia à pé uma rua super movimentada aqui perto e quem vejo deitado quase no meio da rua perto do carrinho? acertou... Seu Severiano.
mas como? eu nunca o vi bebado .. ele até mantem uma conversa, me contou que veio do Rio de Janeiro e tal...
mas naquele dia ele foi à forra....
Ninguem ligava.... todo mundo passava e só via um bêbado perto de um carrinho cheio de papelão ( para piorar mais ainda a situação de querer tirá-lo dali) e os carros desviando
e ele estava bebado....á beça.... tentei ajuda com os passantes mas ninguem queria saber de
nada.... Uma senhora estava bravíssima pois o ocorrido era defronte ao seu salão de estética
meia-boca e me avisou que caso eu conseguisse tirá-lo dali, "que por favor o colocasse em outro lugar" Como se tirar bêbados da rua fosse meu work out favorito
mas o seu Severiano nem é bêbado eu o conheço. Ninguem que tenha aquela ordem ou organizaçõ pode se tornar num bêbado caido quase no meio da rua . Ninguem que varra todo dia a calçada ,mesmo sendo um morador de rua, que já não toma banho a tanto tempo ,de repente cai assim no meio da rua, não combina.... pois é... mas lá estava ele
Fui acordá-lo e convencê-lo a sair dali... ele gritou furiosamente " EU NÃO PEDI PRA NASCER!!! e continuou lá deitado, os carros desviando....
fiquei besta... era a pura verdade.. ele não tinha pedido pra nascer. Meus argumentos acabaram
mas meu carinho por ele não acabou... liguei pra este e mais aquele numeros oficiais que só me enrolaram até que um senhor de idade , bem velhinho mesmo... se propos a me ajudar
Juntos o tiramos dali e o colocamos um pouquinho mais para lá do Salão da Loira Idiota.
O velhinho fez força eu ajudei e colocamos o carrinho do seu Severiano em frente ao bar. provavelmente o mesmo bar onde ele resolveu chutar o balde.
tentei falar com ele , mas não dava .. alem do "Eu Não Pedi Pra Nascer' ele tambem soltava uma espécie de trinado alto , tipo TRRRIIIIITRRRIIIIII, uma coisa parecida com uma locomotiva cheia de vapor querendo esvaziar-se.
Subi a rua convencida que eu tinha que abandoná-lo a seu destino... ele tinha razão " ele não tinha pedido para nascer"
quando já de noite voltava pra minha casa subi a ladeirinha e vi o carrinho de seu Severiano
o carrinho estacionado o guarda sol aberto , contra a possível chuva, os papelões,parafusos, latas velhas, radinhos que não funcionam mais tudo impecavelmente guardado no seu devido lugar
e tambem no seu devido lugar, o Seu Severiano, sempre meio sujo, deitado meia boca no carrinho...
passei aliviada. as coisas haviam voltado para o seu devido lugar. Na manhã seguinte seu Severiano estava varrendo a calçada.
esta não é uma história de Natal, mas até que podia ser.
Aconteceu em Dezembro, tem um bom velhinho, diferentemente de um menino que pediu pra nascer tem o seu Severiano que não pediu, mas mesmo assim continua varrendo a calçada, meio sujo, mas fazendo questão que ao menos a calçada esteja limpa.
esta não é uma história de Natal
